Amor de Perdição - Cap. 22: Capítulo 22 Pág. 143 / 145

Ao segundo dia de viagem, Mariana disse a Simão:

– Se o meu irmão morrer, que hei-de eu fazer àquelas cartas que vão na caixa? Pasmosa serenidade a desta pergunta!

– Se eu morrer no mar – disse ele –, Mariana, atire ao mar todos os meus papéis, todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro também.

Passada uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou:

– Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana?

– Morrerei, senhor Simão.

– Morrerá?!… Tanta gente desgraçada que eu fiz…

A febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos olhos do capitão, que tinha sobeja experiência de ver morrerem centenas de condenados, feridos da febre do mar, e desprovidos de algum medicamento.

Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascais, sobreveio tormenta súbita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e, perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado. Ao sexto dia de navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as refegas, desencapelaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia seguinte, um formoso dia de Primavera. Era o dia 27 de Março,

o nono da enfermidade de Simão Botelho.

Mariana tinha envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou:

– Parece que volta da Índia com os dez anos de trabalhos já passados!…

– Já acabados… decerto… – disse ela. Ao anoitecer desse dia, o condenado delirou pela última vez, e dizia assim no seu delírio:

«A casinha, defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. Passeavas comigo à margem do Mondego, à hora pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a lua abrilhantava a água. Eu res-pondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio, como se fosse o de minha mãe… De que céu tão lindo caímos… A tua amiga morreu… A tua pobre Teresa…

E que farias tu da vida sem a tua companheira de martírio?… Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou… Rompe a manhã… Vou ver a minha última aurora… a última dos meus dezoito anos. Oferece a Deus os teus padecimentos, para que eu seja perdoada… Mariana…»





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