Amor de Perdição - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 6 / 145

Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço relanceou os olhos pela fachada do edifício, e disse de si para si: «É uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e Queluz.»

Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo de ser devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os tectos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao Inverno; que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis.

Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e começou a fábrica de um palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa. As varandas das janelas foram a última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer que a dádiva é um testemunho, até agora inédito, da demência da Senhora D. Maria I.

Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D. Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem também as suas; mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do escultor, e o magistrado não podia com a segunda despesa, nem queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa.

O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los até ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não ousava fitá-la de rosto, quando o ela remirava com a luneta em jeito de tanta altivez e zombaria, que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinela da sua virtude.

Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse.





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