O almuadem, subindo à torre da mesquita, chamava os crentes de Mafamede para a oração da tarde.
Mas com a sua voz esganiçada misturou-se o estrondear dos trovões: era como um tiple e um baixo.
E passou um tufão de vento, que, embrenhando-se e remoinhando nas barbas longas e brancas do almuadem, lhe fustigou com elas a cara.
Começou a cair uma corda de chuva, que nem moços nem velhos se lembravam de ter visto coisa semelhante em nenhuma parte.
Aqui veríeis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres; os roldas e sobrerroldas a fugirem pelos adarves; os facheiros a sumirem-se debaixo das almenaras; os hadjis a acolherem-se às mesquitas molhados até os ossos; as velhas, que tinham saído ao vozear do almuadem, levadas pelas torrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma e por Allah. E a água caindo cada vez mais!
Dois únicos movimentos fazem então os moradores de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. E a água caindo cada vez mais!
O pavor quebra todos os ânimos: os cacizes esconjuram a procela; os faquires penitentes gritam que se acaba o mundo, e que lhes deixe os seus haveres aquele que quiser salvar-se. E a água caindo cada vez mais!
A salvação de Toledo foi não se terem fechado suas portas: se assim não sucedesse, dentro do recinto dos muros morria toda a mourisma afogada.
V
Na prisão estava D. Diogo encostado às grades de ferro. O pobre velho entretinha-se a ouvir aquele medonho chover; porque a noite era comprida, e ele não tinha que fazer mais nada.
Mas, como o terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de muros, a chuva não podia escoar-se toda, e vinha crescendo de modo que já ele sentia os pés molhados.
E também começou a ter medo de morrer, apesar da sua miséria.