- E o pior não é ainda a enxerga - murmurou enfim com um suspiro. - É que não tenho camisa de dormir, nem chinelas!... E não me posso deitar de camisa engomada.
Por inspiração minha recorremos ao Melchior. De novo esse benemérito providenciou, trazendo a Jacinto, para ele desafogar os pés, uns tamancos - e para embrulhar o corpo uma camisa da comadre, enorme, de estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos mais crespos e duros do que lavores de madeira. Paraconsolar o meu Príncipe lembrei que Platão quando compunha o «Banquete», Vasco. da Gama quando dobrava o Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas rijas fazem as almas fortes, oh Jacinto!... E é só vestido de estamenha que se penetra no Paraíso.
- Tens tu - volveu o meu amigo secamente - alguma coisa que eu leia? Não posso adormecer sem um livro.
Eu? Um livro? Possuía apenas o velho número do «Jornal do Comércio», que escapara à dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa folha pelo meio, partilhei com Jacinto fraternalmente. Ele tomou a sua metade, que era a dos anúncios... E quem não viu então Jacinto, senhor de Tormes, acaçapado à borda da enxerga, rente da vela de sebo que se derretia no alqueire, com os pés encafuados nos socos, perdido dentro das ásperas pregas e dos rijos folhos da camisa serrana, percorrendo num pedaço velho de gazeta, pensativamente, as partidas dos paquetes - não pode saber o que é uma intensa e verídica imagem do Desalento.
Recolhido à minha alcova espartana, desabotoava o colete, num delicioso cansaço, quando o meu Príncipe ainda me reclamou:
- Zé Fernandes... - Dize. Manda também no saco um abotoador de botas. Estirado comodamente na rija enxerga murmurei, como sempre murmuro ao penetrar no Sono, que é um primo da Morte: «Deus seja louvado!» Depois tomei a metade do «Jornal do Comércio» que me pertencia.