lento e pensativo, murmurando:
- Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara! Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com a ponta do cajado no chão:
- Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei a face para ele, mais em confidência: - Mas, o tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei D. Sebastião voltara?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo de espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos seus pensamentos:
Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as, almas que estão dentro. Há corpos de agora com almas de outrora. Corpo é vestido, alma é pessoa... Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros... Em ruim corpo se esconde bom senhor!
E como ele findara num murmúrio, eu, atirando um olhar a Jacinto, para gozarmos aqueles estranhos, pitorescos modos de vidente, insisti:
- Mas, tio João, você realmente, na sua consciência, pensa que el-rei D. Sebastião não morreu na batalha?
O velho ergueu para mim a face, que se enrugara numa desconfiança: - Essas coisas são muito antigas. E não calham bem aqui à porta do Torto. O vinho era bom, e Vossa Senhoria tem pressa, meu menino! A flor da Flor da Malva lá tem o paizinho doente... Mas o mal já vai pela serra abaixo com a inchação às costas. Dá gosto ver quem dá gosto aos tristes. Por cima de Tormes há uma estrela clara. E é trotar, trotar, que o dia está lindo!
Com a magra mão lançou um gesto para que seguíssemos.