Sobre a sua quinta e solar de Tormes, por toda a serra, passara uma tormenta devastadora de vento, corisco e água. Com as grossas chuvas, «ou por outras causas que os peritos dirão» (como exclamava na sua carta angustiada o procurador Silvério), um pedaço de monte, que se avançava em socalcos sobre o vale da Carriça, desabara, arrastando a velha igreja, uma igrejinha rústica do século XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacinto desde os tempos de el-rei D. Manuel. Os ossos veneráveis desses Jacintos jaziam agora soterrados sob um montão informe de terra e pedra. O Silvério já começara com os rapazes da quinta a desatilhar os «preciosos restos». Mas esperava ansiosamente as ordens de Sua Excelência...
Jacinto empalidecera, impressionado. Esse velho solo serrano, tão rijo e firme desde os Godos, que de repente ruía! Esses jazigos de paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva, para um negro fundo de vale! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data, uma história, confundidas num lixo de ruína!
- Coisa estranha, coisa estranha!... E toda a noite me interrogou acerca da serra e de Tormes, que eu conhecia desde pequeno, porque o velho solar, com a sua nobre alameda de faias seculares, se erguia a duas léguas da nossa casa, no antigo caminho de Guiães à estação e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom Melchior, era cunhado do nosso feitor da Roqueirinha - e muitas vezes, depois da minha intimidade com Jacinto, eu entrara no robusto casarão de granito, e avaliara o grão espalhado pelas salas sonoras, e provara o vinho novo nas adegas imensas...
- E a igreja, Zé Fernandes?... Entraste na igreja? - Nunca... Mas era pitoresca, com uma torrezinha quadrada, toda negra, onde há muitos anos vivia uma família de cegonhas.