E assim ascendi ao Paraíso. Decerto era o Paraíso - porque com meus olhos de mortal argila avistei o Ancião da Eternidade, aquele que não tem Manhã nem Tarde. Numa claridade que dele irradiava mais clara que todas as claridades, entre fundas estantes de ouro abarrotadas de códices, sentado em vetustíssimos fólios, com os flocos das infinitas barbas espalhados por sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catálogos - o Altíssimo lia. A fronte superdivina que concebera o Mundo pousava sobre a mão superforte que o Mundo criara - e o Criador lia e sorria. Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu ombro coruscante. O livro era brochado, de três francos... O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria.
Uma porta faiscou e rangeu, como se alguém penetrasse no Paraíso. Pensei que um santo novo chegara da Terra. Era Jacinto, com o charuto em brasa, um molho de cravos na lapela, sobraçando três livros amarelos que a princesa de Carman lhe emprestara para ler!
Numa dessas ativas semanas, porém, a minha atenção subitamente se despegou deste interessante Jacinto. Hóspede do 202, conservava no 202 a minha mala e a minha roupa: e, acostado à bandeira do meu Príncipe, ainda ocasionalmente comia do seu caldeirão sumptuoso. Mas a minha alma, a minha embrutecida alma, e o meu corpo, o meu embrutecido corpo, habitavam então na Rua do Helder, nº 16, quarto andar, porta à esquerda.
Descia eu uma tarde, numa leda paz de ideias e sensações, o Boulevard da Madalena, quando avistei, diante da estação dos ónibus, rondando no asfalto, num passo lento e felino, uma criatura seca, muito morena, quase tisnada, com dois fundos olhos taciturnos e tristes, e uma mata de cabelos amarelados, toda crespa e rebelde, sob o chapéu velho de plumas negras.