A Cidade e as Serras - Cap. 5: CAPÍTULO V Pág. 70 / 238

E, sobre a minha sepultura, que tão irreverentemente se assemelhava ao meu vaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei a lagosta. Depois, num esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo que, não somente toda a entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei Madame Colombe! Recaí sobre o leito de «D. Galeão»... Recarreguei o chapéu sobre os olhos para não sentir os raios do sol. Era um sol novo, um sol espiritual, que se erguia sobre a minha vida. E adormeci, como uma criancinha docemente embalada num berço de verga pelo Anjo da Guarda.

De manhã, lavei a pele num banho profundo, perfumado com todos os aromas do 202, desde folhas de limonete da Índia até essência de jasmim de França: e lavei a alma com uma rica carta da tia Vicência, em letra farta, contando da nossa casa, e da linda promessa das vinhas, e da compota de ginja que nunca lhe saíra tão fina, e da alegre fogueira do pátio em noite de S. João, e da menininha muito gorda e cabeluda que viera do Céu para a minha afilhada Joaninha. Depois, à janela, bem limpo de alma e de corpo, numa quinzena de sedinha branca, tomando chá de Naipó, respirando os rosais do jardim revividos pela chuva da madrugada, considerei, em divertido pasmo, que, durante sete semanas, me emporcalhara, na Rua do Helder, com um estardalho muito magro e muito tisnado! E concluí que padecera de uma longa sezão, sezão da carne, sezão da imaginação, apanhada num charco de Paris nesses charcos que se formam através da Cidade com as águas mortas, os limos, os lixos, os tortulhos e os vermes de uma Civilização que apodrece.

Então, curado, todo o meu espírito, como uma agulha para o norte, se virou logo para o meu complicado Príncipe, que, nas derradeiras semanas da minha infeção sentimental, eu entrevira sempre descaído por cima de sofás, ou vagueando através da Biblioteca entre os seus trinta mil volumes, com arrastados bocejos de inércia e de vacuidade.





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