Os Crimes da Rua Morgue - Cap. 1: Os crimes da Rua Morgue Pág. 6 / 42

Vivíamos só para nós.

O meu amigo tinha uma mania singular (pois que outro nome poderei dar-lhe?) - amava a noite só por amor dela; e eu acabei por cair nesta singularidade como em muitas outras, abandonando-me totalmente às suas estranhas originalidades. A negra divindade não podia estar sempre connosco; mas nós podíamos inventar a sua presença. Ao romper do dia fechávamos todas as persianas da casa; acendíamos um par de velas fortemente perfumadas, cujos raios lançavam em roda uma luz fraca e ténue. Esta pálida claridade ajudava os nossos espíritos a mergulhar no sonho; líamos, escrevíamos ou conversávamos até que o relógio batia a hora da verdadeira noite. Saíamos então de braço dado, continuando a conversa do dia ou percorrendo a cidade até horas mortas, procurando no alternar das luzes e das sombras da cidade populosa aquela excitação do espírito que a observação tranquila pode trazer.

Nessas ocasiões não podia deixar de notar e admirar (embora a sua riqueza de ideal me pusesse ao abrigo das surpresas) a peculiar capacidade analítica de Dupin. Este parecia também deliciar-se em exercitá-la - se não exactamente em ostentá-la -, e confessava francamente o prazer que daí tirava. Dizia-me, gabando-se e com um riso ligeiro, que muitos homens tinham no peito uma janela aberta sobre o coração e acompanhava habitualmente esta afirmação com provas imediatas e surpreendentes do conhecimento profundo que tinha de mim. A sua atitude nesses momentos era fria e abstracta; os seus olhos ficavam vazios de expressão; e a voz, uma rica voz de tenor, subia a um falsete que poderia parecer petulante se não fosse a certeza e perfeita nitidez com que pronunciava as palavras. Ao observar-lhe aqueles modos pensava muitas vezes na velha filosofia da alma dupla e divertia-me a imaginar um Dupin duplo - o criador e o analista.





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