O Pai Goriot - Cap. 1: O PAI GORIOT Pág. 116 / 279

Essas peripécias, tema de tantas declamações, essas reviravoltas repentinas são cálculos feitos em proveito das nossas alegrias. Vendo-se bem aperaltado, com belas luvas, belas botas, Rastignac esqueceu a sua virtuosa resolução. A juventude não ousa mirar-se no espelho da consciência quando esta pende para o lado da injustiça, enquanto a idade madura já se lá mirou: aí está toda a diferença entre estas duas fases da vida. Desde há alguns dias os dois vizinhos, Eugène e o pai Goriot, tinham-se tornado bons amigos. Esta amizade secreta baseava-se em razões psicológicas que tinham provocado sentimentos contrários entre Vautrin e o estudante. O corajoso filósofo que quiser constatar os efeitos dos nossos sentimentos no mundo físico encontrará talvez mais de uma prova da sua efectiva materialidade nas relações que criam entre nós e os animais. Que fisionomista é mais rápido a adivinhar um carácter do que um cão que sabe se um desconhecido gosta dele ou não? Os átomos curvos, expressão proverbial que todos utilizam, são um desses factos que ficam na linguagem para desmentir as balelas filosóficas que ocupam o espírito daqueles que gostam de arruinar os restos das palavras primitivas. Sentimo-nos amados. O sentimento emprenha-se em todas as coisas e atravessa os espaços. Uma carta é uma alma, é um eco tão fiel da voz que fala que os espíritos delicados a contam por entre os mais ricos tesouros do amor. O pai Goriot, cujo sentimento irreflectido elevava até ao sublime da natureza canina, tinha cheirado a compaixão, a bondade admirável, as simpatias juvenis que se tinham desenvolvido por ele no coração do estudante. No entanto essa união crescente não tinha ainda levado a nenhuma confidência. Se Eugène tinha manifestado o desejo de ver a senhora de Nucingen, não era que contasse com o velhote para se introduzir na casa dela, mas esperava que uma indiscrição o pudesse servir.




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