Capítulo 1: UM EPISÓDIO NO TEMPO DO TERROR
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Junto deste cibório monumento de magnificência real; a água e o vinho destinados ao santo sacrifício estavam dentro de dois copos indignos da mais ordinária das tabernas. À falta, de missal, o padre pusera o breviário a um canto do altar. Um prato vulgar estava preparado para a lavagem das mãos inocentes e puras de sangue. Tudo era imenso, mas pequeno; pobre, mas nobre: profano e santo ao mesmo tempo. O desconhecido veio, piedosamente, ajoelhar entre as duas religiosas. Mas, de súbito" ao dar-se conta de que havia crepes no cálice e no crucifixo, pois, como o sacerdote não tivesse nada para anunciar a encomendação desta missa fúnebre, pusera de luto o próprio Deus, assaltou-o uma lembrança tão poderosa, que gotas de suor se lhe formaram na larga testa. Os quatro mudos actores desta cena entreolharam-se então misteriosamente; depois as suas almas, agindo sem querer umas sobre as outras, comunicaram-se, desta sorte, mutuamente, os seus sentimentos e confundiram-se numa comiseração religiosa: dir-se-ia que o seu pensamento evocara o mártir, cujos restos haviam sido devorados pela cal viva, e que a sua sombra estava diante deles em toda a sua real majestade. Celebravam um obit sem o corpo do defunto: Sob aquele tecto, debaixo daquelas fasquias desconjuntadas, quatro cristãos iam interceder junto de Deus por um rei de França, e fazer-lhe o enterro sem ataúde. Era a mais pura das dedicações, um espantoso acto de fidelidade realizado sem pensamentos reservados. Aos olhos de Deus deve ter sido como o copo de água que faz vacilar as maiores virtudes. Toda a monarquia ali estava, nas orações de um padre e de duas pobres mulheres; mas talvez a própria Revolução ali estivesse representada por aquele homem cuja expressão traía remorsos de mais para não crermos que ele realizasse os votos de um imenso arrependimento.
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