Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 23: CAPÍTULO XXI - Que trata da alta aventura e preciosa ganância do elmo de Mambrino, com outras coisas sucedidas ao nosso invencível cavaleiro. Pág. 194 / 590
Mandará logo o Rei que todos os presentes provem naquilo a sua habilidade; e nenhum atinará, salvo o hóspede, com grandes aumentos para a sua fama; do que ficava contentíssima a Infanta, e se estimará feliz de ter posto a sua eleição amorosa em sujeito de tão altos méritos. Para tudo correr ao pintar, este Rei, ou Príncipe (ou o que quer que é) traz uma guerra mui renhida com outro Rei tão poderoso como ele. O cavaleiro hóspede lhe pede, ao cabo de alguns dias de estada na corte, licença para ir servi-lo naquela dita guerra; dar-lha-á o Rei de muito bom grado, e o cavaleiro lhe beijará cortesmente as mãos pela mercê que lhe concede; e nessa noite se despedirá de sua senhora a Infanta, pelas grades de um jardim, para onde deita o aposento de dormir dela, grades por onde já outras muitas vezes lhe tinha falado, sendo medianeira de tudo uma donzela, em que a Infanta muito se confia. Ele suspirará, ela desmaiará, a donzela trará água, lamentar-se-á muito, vendo que já está a amanhecer, e não quisera que o descobrissem, por se não empanar a honra da sua dama. Finalmente a Infanta tornará em si, e dará as suas brancas mãos por entre as grades ao cavaleiro, o qual as beijará mil e mil vezes, e as banhará de lágrimas. Ficará conchavado entre os dois o modo, como se hão-de um ao outro comunicar os seus bons ou maus sucedimentos; e a Princesa lhe pedirá que se demore o menos que puder. Ele lho prometerá com muitos juramentos; torna-lhe a beijar as mãos, e despede-se com tanto sentimento, que por pouco lhe não foge a vida. Vai dali para o quarto, deita-se sobre o leito, não pode dormir com a dor da partida, levanta-se antes da madrugada, vai-se despedir do Rei, da Rainha e da Infanta. Despedido já das duas primeiras personagens, dizem-lhe que a senhora Infanta está mal disposta, e que não pode receber visitas.