— Visto isso, já lá estiveste mais duma vez — disse D. Quixote.
— Para servir a Deus e a El-Rei já lá estive quatro anos, e já sei a que sabe a bolacha e mais o vergalho — respondeu Ginez; — pouco se me dá tornar a elas; assim terei vagar para concluir o meu livro, que ainda me faltam muitas coisas que dizer, e nas galés de Espanha há sossego de sobra.
Verdade é que o que me falta escrever já não é muito, e tenho-o de cor.
— Esperto me pareces tu — disse D. Quixote.
— E desditado também — acrescentou Ginez — não admira; as desventuras vêm sempre na cola do talento.
— Na cola dos velhacos — emendou o comissário.
— Já lhe disse, senhor comissário — respondeu Ginez — que ande devagarinho, que aqueles senhores não lhe deram essa vara para maltratar os pobrezinhos que aqui vamos; deram-lha para nos guiar, e ir-nos pôr onde Sua Majestade manda, senão por vida de... basta, não é impossível que algum dia depois da barrela saiam as nódoas do que passou na venda. Cada um que tape a sua boca, viva bem e fale melhor; e toca a andar, que de chalaça já basta.
Levantou a vara ao alto o comissário para dar a Passamonte o troco das suas picuinhas; mas D. Quixote se lhe pôs diante, e lhe pediu que não espancasse o homem, pois quem levava as mãos tão presas não admirava tivesse na língua alguma soltura; e dirigindo-se a todos os da leva, disse:
— De tudo que me haveis dito, caríssimos irmãos, tenho tirado a limpo o seguinte: que, se bem vos castigaram por vossas culpas, as penas que ides padecer nem por isso vos dão muito gosto, e que ides para elas muito a vosso pesar e contra vontade, e que bem poderia ser que o pouco ânimo daquele nos tratos, a falta de dinheiro neste, os poucos padrinhos daqueloutro, e finalmente que o juízo torto do magistrado fossem causa da vossa perdição, e de se vos não ter feito a justiça que vos era devida.