Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 27: CAPÍTULO XXV - Que trata das estranhas coisas que em Serra Morena sucederam ao valente cavaleiro da Mancha, e da imitação que fez da penitência de Beltenebrós. Pág. 258 / 590
cabelo encarapinhado, e pajem de Agramante; e, se ele acreditou ser aquilo verdade, e que a sua dama lhe tinha a ele feito agravo, não fez nada demais em endoidecer; mas eu como é que nas loucuras o posso imitar, se para elas não tenho iguais motivos? porque a minha Dulcinéia del Toboso atrevo-me a jurar que nunca em dias de sua vida viu mouro algum em seu trajo natural, e que se conserva ainda hoje como a mãe a deu à luz; pelo que lhe faria agravo manifesto, se, imaginando o contrário a seu respeito, me tornasse louco daquele gênero de loucura de Roldão o furioso. Por outra parte, vejo que Amadis de Gaula, sem perder o juízo, nem fazer loucuras, alcançou tamanha fama de enamorado como os que maior a tiveram, porque o que fez (conforme na sua história se refere) não foi mais do que por ver-se desdenhado da sua senhora Oriana, que lhe tinha mandado não aparecesse na sua presença enquanto ela não quisesse, retirou-se então à Penha Pobre em companhia dum ermitão, e ali se fartou de chorar, até que o céu lhe acudiu no meio da sua maior tristeza e desamparo. Ora se isto é verdade, como é, para que quero eu ter agora o trabalho de despir-me de todo, nem fazer ofensa a estas árvores que nenhum mal me fizeram? nem tenho razão para enturvar a água clara destes arroios que me hão-de dar de beber quando tiver sede. Viva a memória de Amadis! e imite-o D. Quixote de la Mancha em tudo que puder. Deste se dirá o que de outro se disse: que, se não perfez grandes coisas para acometê-las, morreu; e, se eu não sou despedido nem desdenhado da minha Dulcinéia, basta-me, como já está dito, o estar-me ausente dela. Eia pois! mãos à obra! acudi-me à lembrança coisas de Amadis, e ensinai-me por onde devo começar a imitá-lo; já sei que rezar foi o que ele mais praticou; assim o farei eu também.