Capítulo 28: CAPÍTULO XXVII - De como se houveram o cura e o barbeiro, com outras coisas dignas de ser contadas nesta grande história.
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” Creio que ela não chegou a ouvir-me tudo, porque senti que a chamavam à pressa, porque o noivo estava esperando. Com isto se fechou a noite da minha tristeza, tramontou o sol da minha felicidade, perdi o lume dos olhos e do entendimento. Não acertava para entrar em casa dela, nem mover-me podia. Considerando porém quanto a minha presença era necessária para o que no caso poderia suceder, animei-me o mais que pude, e penetrei. Como conhecia bem todas as entradas e saídas, com o alvoroto que lá por dentro ia, ninguém reparou em mim, e tive modo de me colocar no vão duma janela da mesma sala, cortinada de tapeçarias, por entre as quais podia, sem ser visto, descobrir quanto se passasse. Quem poderia agora dizer os sobressaltos deste coração enquanto ali me conservei? os pensamentos que me ocorreram? as considerações que fiz, que foram tantas e tais, que nem se podem referir nem é bem que se refiram? Basta que saibais que o noivo entrou na sala sem mais compostura que o seu trajo do costume. Vinha-lhe por padrinho um primo co-irmão de Lucinda, e em toda a sala não havia pessoa de fora, senão os criados da casa. Dentro em pouco saiu duma câmara Lucinda, acompanhada da mãe e de duas donzelas suas, tão bem adereçada e composta, como à sua qualidade e formosura competia, sendo ela o extremo da gala e bizarria cortesã. O meu enlevo não me deixou notar o que trazia vestido; só pude ver que as cores eram encarnado e branco, reluzindo a pedraria e joias do toucado e de todo o vestuário, e realçando por cima de tudo a beleza singular de seus louros cabelos; tais brilhavam eles sem competência com as pedras preciosas e com as luzes de quatro tochas que na sala estavam, que ainda se lhes avantajavam. Ah! memória mortal, perturbadora
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