— Sou — respondeu Cardênio — aquele sem ventura, que, segundo vós, senhora, aí dissestes, Lucinda declarou ser seu esposo; sou o desditado Cardênio, a quem a perfídia do mesmo de quem também sois vítima reduziu a este estado que vedes, roto, nu, falto de todo o conforto humano, e, o que é ainda pior, falto do juízo, pois só o tenho quando nalguns breves intervalos o céu se lembra de mo emprestar. Sou, sou eu, Dorotéia, aquele que se achou presente às infâmias de D. Fernando, e se deteve aguardando o sim de Lucinda; sou o que não teve ânimo para esperar o desfecho do desmaio dela e aguardar o que resultaria do papel que lhe acharam no seio. Faltou-me valor para tanto padecimento junto; fugi da casa descorçoado, deixei a um hospedeiro meu uma carta a Lucinda para lhe ser entregue, e corri para estas soledades determinado em acabar nelas a existência, que desde aquele instante fiquei aborrecendo como inimiga mortal. Não aprouve porem à sorte livrar-me dela; contentou-se com tirar-me o juízo; foi talvez a sua ideia que eu sobrevivesse para a boa ventura que hoje tive em dar convosco, pois, sendo verdade, como acredito, o que nos haveis contado, ainda não era impossível, que a ambos nós nos reservasse Deus melhor êxito nos nossos desastres, do que nós supomos; porquanto, não podendo Lucinda casar com D. Fernando por ser minha, nem D. Fernando com ela por ser vosso, tendo ela manifestado tão solenemente a verdade, bem podemos esperar que a Providência nos restitua ainda o que nos pertence por direito incontroverso. Uma vez que temos esta luz no futuro, e esta esperança não remota, nem fundada em quimeras, suplico-vos, senhora, que mais acertadamente se encaminhem os vossos honrados pensamentos; outro tanto farei eu da minha parte; sujeito-me a esperar por melhor fortuna.