Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 41: CAPÍTULO XL - No qual se conta a história do cativo. Pág. 454 / 590
Eu escrevi isto, repara bem naquele a quem o deres a ler, não te fies de nenhum mouro, porque todos são pérfidos. Disto tenho eu muita pena, pois quisera que em ninguém te confiasses, porque, se meu pai o souber, me lançará logo a um poço e me cobrirá de pedras, porei um fio na cana, ata nele a resposta, e se não tens quem te escreva em árabe, exprime-te por sinais, que Lella Maryem fará com que eu te entenda. Ela e Alá te guardem, e bem assim também essa cruz que eu beijo muitas vezes, como me ordenou a cativa.” Notai, senhores, se tínhamos ou não justos motivos para que as razões deste papel nos causassem admiração e alegria, e tanto mais que o renegado bem entendeu não ter sido casualmente achado este papel, antes se capacitou de que realmente a algum de nós fora dirigido; e nesta persuasão nos pediu que, se era verdade o que suspeitava, nos fiássemos nele, pois, sendo assim, arriscaria a sua vida pela nossa liberdade; e, dizendo isto, tirou do peito um crucifixo de metal, e derramando muitas lágrimas, jurou por Deus, representado por aquela imagem, em que ele, ainda que muito pecador e frágil, muito e muito fielmente cria que guardaria lealdade e segredo em tudo quanto quiséssemos descobrir-lhe porque lhe parecia e quase adivinhava que por meio daquela que o papel havia escrito, ele e todos nós conseguiríamos a nossa liberdade, e deste modo alcançaria ele o que mais desejava, que era voltar ao grêmio da Santa Igreja sua Mãe, da qual como membro pobre estava separado por sua ignorância e por seus pecados. Com tantas lágrimas e com mostras de tanto arrependimento falou o renegado, que todos nós afoitamente resolvemos declarar-lhe a verdade do sucesso, e tudo lhe contamos sem encobrir nada. Mostramos-lhe a janela por onde aparecia a cana, e ele marcou dali a casa e ficou de pôr grande e especial cuidado em indagar quem habitava nela.