e, ainda que pobre, sou cristão-velho, e não devo nada a ninguém; e se desejo ilhas, outros desejam coisas piores e cada qual é filho das suas obras; e sendo homem, posso vir a ser papa, quanto mais governador de uma ilha, podendo meu amo ganhar tantas, que lhe falte a quem as dê. Vossa Mercê veja como fala, senhor barbeiro, que nem tudo é fazer barbas, e não há só basbaques no mundo; digo isto, porque todos nos conhecemos, e a mim não me impinge gato por lebre; e, a respeito do encantamento de meu amo, Deus sabe onde estará a verdade, e fiquemos por aqui, que o melhor é não lhe mexer.
Não quis o barbeiro responder a Sancho, para que este não descobrisse com as suas simplicidades o que ele e o cura tanto procuravam encobrir; e, com este mesmo receio, dissera o cura ao cônego que se adiantasse um pouco, para ele lhe contar o mistério do engaiolado, com outras coisas que o divertiriam.
Acedeu o cônego, e adiantou-se com ele e com os seus criados; ouviu atentamente tudo quanto o cura lhe disse da condição, vida, loucura e costumes de D. Quixote, contando-lhe brevemente o princípio e a causa dos seus desvarios, e o que lhe sucedera até ser metido naquela jaula, e a tenção que tinham feito de o levar para a sua terra, a fim de ver se, por algum meio, achavam remédio à sua loucura. Admiraram-se de novo o cônego e os criados, ao ouvir a peregrina história de D. Quixote, e, quando acabaram de a ouvir, disse o cônego:
— Eu por mim, senhor cura, acho, na verdade, que são prejudiciais na república estes livros a que chamam de cavalaria; e ainda que li, arrastado por um gosto errado e vão, o princípio de quase todos os que estão impressos, nunca pude conseguir ler nenhum até ao fim, porque me parece que pouco mais ou menos são todos a mesma coisa.