E outras coisas juntei a estas, deixando-o confuso, mas não convencido nem disposto a arredar-se do seu errado pensamento.
— Tocou Vossa Mercê num assunto, senhor cônego — acudiu o cura — que despertou em mim um antigo rancor, que tenho, contra as comédias que se usam agora, e que iguala o que voto aos livros de cavalaria, porque, devendo ser a comédia, segundo a opinião de Cícero, espelho da vida humana, exemplo dos costumes e imagem de verdade, as que hoje se representam são espelhos de disparates, exemplos de necedades e imagens de lascívia. Pois que maior disparate pode haver no assunto de que tratamos, do que aparecer uma criança no primeiro ato envolta nas faixas infantis, e aparecer no segundo feito já homem barbado? e que maior desatino, do que pintar-nos um velho valente e um moço cobarde, um lacaio retórico, um pajem conselheiro, um rei jornaleiro e uma princesa criada de servir? E que direi do modo como observam o tempo em que podem ou podiam suceder as ações que representam, senão que já vi comédias, em que a primeira jornada principiou na Europa, a segunda na Ásia e a terceira acabou na África, de modo que, se houvesse quatro jornadas, a quarta findaria na América, e assim se teria passado em todas as quatro partes do mundo? E se a imitação deve ser o fim principal da comédia, como é possível que se satisfaça qualquer mediano entendimento com o assistir a uma ação, que, fingindo que se passa na época del-rei Pepino e de Carlos Magno, apresenta ao mesmo tempo, como personagem principal, o imperador Heráclio, entrando com a cruz em Jerusalém, e, ganhando a Casa Santa como Godofredo de Bulhão, havendo infinitos anos que separam um do outro; e, fundando-se a comédia em coisas fingidas, atribuir-lhe verdades