Capítulo 50: CAPÍTULO XLIX - Onde se trata do discreto colóquio que Sancho Pança teve com seu amo D. Quixote.
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tanto palafrém, tanta donzela vagabunda, tantas serpes, tantos endrí agos, tantos gigantes, tantas inauditas aventuras, tanto gênero de encantamentos, tantas batalhas, tantos recontros despropositados, tanta extravagância de trajos, tantas princesas enamoradas, tantos escudeiros condes, tantos anões graciosos, tanto bilhete, tanto requebro, tantas mulheres valentes, e finalmente tantas e tão disparatadas coisas como encerram os livros de cavalaria? Eu de mim sei dizer que, quando os leio, enquanto não ponho na mente que são tudo fábulas e leviandades, algum prazer me dão; mas quando entro na conta do que valem, bato com o melhor de todos eles na parede, e ainda os atirara ao lume se o tivesse próximo ou presente, como merecedores de tal pena, por serem falsos e embusteiros, como inventores de novas seitas e de novo modo de vida, e como quem dá ocasião a que o vulgo ignorante venha a crer e a ter por verdadeiras tantas necedades como as que eles encerram. E também tanto atrevimento têm que ousam turbar os engenhos dos fidalgos discretos e bem nascidos, como se mostra pelo que lhe fizeram a Vossa Mercê, que o levaram a termos de ser forçoso metê-lo numa jaula, e transportá-lo sobre um carro de bois, como quem transporta de lugar para lugar algum leão ou tigre, para o mostrar por dinheiro. Eia! senhor D. Quixote, doa-se de si próprio, e volte ao grêmio da discrição, e saiba usar da muita que o céu foi servido dar-lhe, empregando o seu felicíssimo talento noutra leitura que redunde em proveito da sua consciência e acrescentamento da sua honra. E, se ainda levado da sua natural inclinação, quiser ler livros de façanhas e de cavalarias, leia na Sagrada Escritura o dos juízes, que ali achará verdades grandiosas e feitos tão reais como denodados.
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