Capítulo 52: CAPÍTULO LI - Que trata do que contou o cabreiro a todos os que levavam D. Quixote.
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que a justifica e vitupera; um celebra a sua formosura, outro renega da sua condição e, enfim, todos a infamam e todos a adoram, e essa loucura a tanto se estende, que há quem se queixe dos seus desdéns, sem nunca lhe ter falado, e até quem se lamente e sinta a furiosa enfermidade dos zelos, que ela nunca a ninguém causou, porque, segundo eu já disse, soube-se do seu pecado antes de se saber do seu desejo. Não há concavidades de rochedos, margens de arroio, ou sombras de árvores que não estejam ocupadas por pastores que refiram aos ventos as suas desventuras; o eco, em todos os pontos em que pode formar-se, repete o nome de Leandra; Leandra, ressoam os montes; Leandra, murmuram os regatos, e Leandra a todos nos tem suspensos e encantados, esperando sem esperança e temendo sem saber o que tememos. Entre todos estes insensatos, o que se mostra a um tempo mais avisado e mais louco é o meu rival Anselmo, que, tendo tantas outras coisas de que se queixar, só se queixa da ausência e, ao som dum arrabil, que toca admiravelmente, com versos que mostram o seu engenho, a cantar se vai lamentando. Eu sigo outro caminho mais fácil e no meu parecer mais acertado, que é dizer mal da leviandade das mulheres, da sua inconstância, da sua doblez, das suas promessas descumpridas, de sua fé quebrantada e, finalmente, do pouco discorrer com que empregam os seus pensamentos e inclinações; e foi este o motivo, senhores, das palavras e razões que disse a esta cabra, quando aqui cheguei, que, por ser fêmea, pouco a prezo, apesar de ser a melhor do meu rebanho. É esta a história que prometi contar-vos. Se fui prolixo em narrá-la, não o serei menos em servir-vos; perto daqui tenho a minha choça e nela fresco leite e saborosíssimo queijo, variadas e maduras frutas, que não são menos agradáveis à vista que ao paladar.
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