— Não ponho dúvida nisso — redarguiu mestre Nicolau — mas não me maravilho tanto da loucura do cavaleiro, como da simplicidade do escudeiro, que tão ferrada lá tem a história da ilha, que me parece que lha não tiram dos cascos nem quantos desenganos se possam imaginar.
— Deus lhe dê remédio — tornou o cura — e estejamos à mira; veremos em que pára esta máquina de disparates com semelhante cavaleiro, e semelhante escudeiro, que parece que os tiraram a ambos da mesma pedra, e que as loucuras do amo, sem as necedades do criado, não valeriam coisa alguma.
— Assim é — confirmou o barbeiro — e folgaria muito de saber em que estarão os dois palestrando.
— Tenho a certeza — disse o cura — que a sobrinha ou a ama no-lo contarão depois, que não são elas pessoas que deixem de se pôr à escuta.
Entretanto D. Quixote fechou-se com Sancho no seu aposento, e, apenas se viu só com ele, disse-lhe:
— Muito me pesa, Sancho, que tenhas dito e continues a dizer que fui eu que te tirei da tua choupana, sabendo tu muito bem que eu não fiquei em casa. Juntos saímos, juntos nos fomos, e juntos peregrinamos; correu-nos a ambos a mesma fortuna e a mesma sorte; se a ti te mantearam uma vez, a mim derrearam-me cem vezes, e é essa a única vantagem que te levo.
— Isso era de razão — respondeu Sancho — porque, segundo Vossa Mercê diz, mais perseguem as desgraças os cavaleiros andantes, do que os seus escudeiros.
— Enganas-te, Sancho — redarguiu D. Quixote — porque lá dizem: quando caput dolet, etc.
— Eu cá não entendo outra língua senão a minha — respondeu Sancho.
— Quero dizer — tornou D. Quixote — que, quando nos dói a cabeça, todos os membros nos doem; e assim, sendo eu teu amo e senhor, sou a tua cabeça e tu és parte de mim, visto que és meu criado; e por esse motivo o mal que me toca ou me tocar, há-de te doer a ti, e a mim o teu.