que não podem empregar na minha pessoa as suas danadas manhas, vingam-se nos entes a que mais quero, e pretendem tirar-me a vida, maltratando Dulcineia, por quem vivo: e assim, creio que, quando o meu escudeiro lhe levou a minha mensagem, converteram-na em vilã, e em vilã ocupada em tão baixo exercício, como o de joeirar trigo; mas também eu já disse que aquilo não eram grãos de trigo, mas sim pérolas orientais; e, para prova desta verdade, quero dizer a vossas magnitudes que, passando eu agora pelo Toboso, nunca fui capaz de encontrar os palácios de Dulcineia, e que outro dia, tendo-a visto Sancho, meu escudeiro, em sublime figura, que é a mais bela do mundo todo, a mim pareceu-me uma lavradeira tosca e feia, e muito rústica no falar, sendo ela a discrição do mundo; e, visto que eu não estou encantado, nem o posso estar, como o bom senso o mostra, é ela a encantada, a ofendida e a transformada, e nela se vingaram de mim os meus inimigos, e por ela viverei em perpétuas lágrimas, até a ver em seu antigo estado; tudo isto eu disse para que ninguém faça caso do que refere Sancho a respeito de a ter encontrado a joeirar trigo, que, se a mudaram para mim, a ele lha trocariam também. Dulcineia é de alto nascimento e das fidalgas linhagens que há no Toboso, que são muitas, antigas e ótimas. E este lugar ficará famoso por ter dado o berço à incomparável Dulcineia, como foi Troia por Helena, e a Espanha pela Cava, mas ainda com melhor título e fama.
Demais, desejo que vossas senhorias entendam que Sancho Pança é um dos mais divertidos escudeiros que nunca serviram a cavaleiro andante; tem às vezes umas simplicidades tão agudas, que a gente pergunta a si própria se tudo aquilo é necedade ou malícia; umas vezes parece velhaco, e outras vezes tolo: de tudo duvida e tudo acredita; quando penso que se vai despenhar por tonto, sai-me com umas discrições que o levantam ao céu.