por pai o próprio diabo, (mentira autorizada pelos tempos) príncipe da arte mágica, monarca e arquivo da ciência zoroástrica, êmulo das idades, e dos séculos, que solapar pretendem as façanhas dos andantes valentes cavaleiros, a quem eu tive e tenho grande afeto.
Mas, apesar de ser dos nigromantes, dos magos e dos mágicos, por uso, severa a condição, áspera e forte, a minha é terna, e amorosa e branda: gosto de fazer bem a toda a gente.
Nessas cavernas lôbregas de Dite, onde em formar os magos caracteres minha alma se entretinha, ouvi, de súbito, a voz plangente e meiga da formosa e sem par Dulcineia del Toboso.
Narrou-me então seu infeliz destino, sua transformação de gentil dama em rústica aldeã; compadeci-me; dentro desta figura horripilante encerrei meu espírito; mil livros revolvi, manuseei, desta ciência endiabrada e torpe que professo, e enfim, trago remédio competente para tamanha dor, desgraça tanta.
Ó tu que és honra e glória dos que vestem túnicas de aço e rútilo diamante, luz e fanal e mestre e norte e guia daqueles que, deixando o torpe sono e os ociosos leitos, só se empregam no rude, intolerável exercício das sangrentas, fatais, pesadas armas!
A ti digo, ó varão nunca louvado como o mereces ser; a ti, valente cavaleiro e discreto D. Quixote, da Mancha resplendor, da Espanha estrela:
Para que Dulcineia del Toboso possa recuperar o antigo estado, deve o teu escudeiro Sancho Pança assentar nas suas largas pousadeiras, descobertas e ao ar, três mil açoites com suas próprias mãos, e mais trezentos... açoites que lhe doam bem deveras.
Mandam isto os que foram da desgraça da bela Dulcineia causadores, e aqui vim a dizê-lo, meus senhores.
— Voto a tal — acudiu logo Sancho — eu não dou em mim próprio, já não digo três mil açoites, mas nem três que são três.