Dom Quixote de La Mancha – Livro Segundo - Cap. 38: CAPÍTULO XXXVIII - Onde se conta o que disse das suas desventuras a Dona Dolorida. Pág. 310 / 593
dos corpos, e finalmente o azougue de todos os sentidos! E assim digo, senhores meus, que os tais trovadores com justo motivo se devem desterrar para as ilhas dos Lagartos; mas não têm eles culpa: quem a tem são as simples que os louvam, e as tolas que os acreditam, e, se eu fosse a boa dona que devia ser, não me moveriam os seus tresnoitados conceitos, nem acreditaria que fosse verdadeiro aquele dizer: vivo morrendo, ardo no gelo, tenho calafrios no lume, espero sem esperança, parto e fico, e outros impossíveis desta laia, de que os seus escritos estão cheios! Pois, em prometendo o fénix da Arábia, o fio de Ariadne, os cavalos do sol, as pérolas do sul, o ouro de Tibar e bálsamo de Pancaia?! Aqui é que eles alargam mais a pena, porque lhes custa pouco prometer o que nunca pensaram, nem poderiam cumprir. Mas que digressões são estas? Ai de mim! desditosa! que loucura, ou que desatino me leva a contar as culpas alheias, tendo tanto que dizer das minhas? Ai de mim! desventurada! não me renderam os versos, rendeu-me a simplicidade minha; não me abrandou a música, mas sim a minha leviandade; a minha muita ignorância e pouca advertência abriram e franquearam o caminho a D. Clavijo, que assim se chama o referido cavaleiro; e assim, sendo eu medianeira, muitas vezes entrou ele no quarto de Antonomásia, enganada por mim e não por ele, com o título de verdadeiro esposo, que, apesar de pecadora, não consentiria nunca que ele, sem ser seu marido, lhe tocasse nem na ponta do sapato. Não, não! isso não. O matrimônio há-de ir sempre adiante em quaisquer negócios destes que por mim se tratarem; houve só um mal neste negócio, que foi o da desigualdade de nascimento, por ser D. Clavijo um cavalheiro particular, e a infanta Antonomásia herdeira do reino, como já disse.