— Tarde piaste — respondeu Sancho; — era mais fácil fazer-me turco, do que deixar de me ir embora. Isto não são brincadeiras para duas vezes; com este governo me fico, e não torno a aceitar mais nenhum, nem que mo ofereçam numa bandeja, que eu não sou dos que querem voar ao céu sem asas. Sou da linhagem dos Panças, que sempre foram cabeçudos, e que, em dizendo uma vez nunes, nunes hão-de ser, ainda que sejam pares, apesar de todo o mundo. Fiquem, nesta cavalariça, as asas de formiga, que me levantaram aos ares, para me comerem os pássaros, e tornemos a andar pelo chão com pé rasteiro, que, se o não adornarem sapatos golpeados de cordovão, não lhe hão-de faltar alpargatas toscas de corda; lé com lé e cré com cré; ninguém estenda as pernas para fora do lençol, e deixem-me passar, que se faz tarde.
— Senhor governador — disse o mordomo — de muito boa vontade deixaríamos Vossa Mercê ir-se embora, ainda que muito nos pese perdê-lo, que o seu engenho e o seu proceder cristão obrigam a desejá-lo; mas, é sabido que todo o governador deve, antes de se ausentar, dar primeiro residência; dê a Vossa Mercê dos dias em que governou, e vá na paz de Deus.
— Ninguém ma pode pedir — respondeu Sancho — senão quem tiver essa incumbência da parte do duque meu senhor; vou vê-lo agora, e lá lha darei; tanto mais que, saindo eu como saio, não é necessário mais sinal para se saber que governei como um anjinho.
— Por Deus, tem o grande Sancho razão — disse o doutor Récio — e sou de parecer que não teimemos, porque o duque há-de gostar imenso de o ver.
Todos acordaram nisso e deixaram-no ir, oferecendo-lhe primeiro companhia, e tudo o que quisesse para regalo da sua pessoa, e comodidade da sua viagem. Sancho disse que não queria senão uma pouca de cevada para o ruço, e meio queijo e meio pão para si; que, visto ser tão curto o caminho, não era mister maior nem menor viático.