— Valha-me Deus! — disse a sobrinha — saber Vossa Mercê tanto, que, se fosse mister, podia numa urgência subir ao púlpito ou ir a pregar por essas ruas, e com tudo isso cair numa insensatez tão óbvia, que dê a entender que é valente, sendo velho, que tem forças, estando enfermo, e que endireita tortos, estando derreado pela idade, e sobretudo que é cavaleiro, não o sendo, porque, ainda que o possam ser os fidalgos, nunca o são os pobres!
— Tens muita razão, sobrinha — respondeu D. Quixote — e a respeito de linhagens, poderia eu dizer-te coisas que te fariam espanto; mas, para não misturar o divino com o profano, não as digo.
Olhai, queridas, a quatro espécies de linhagens (atendei bem) se podem reduzir todas as que há no mundo, e vem a ser: umas, que tiveram humildes princípios, e se foram estendendo e ampliando até chegar à suma grandeza; outras, que tiveram princípios grandes, e os foram conservando, e conservam e mantêm no mesmo pé em que começaram; outras, apesar de haverem tido grandes princípios, acabaram em ponta, como uma pirâmide, que, em comparação da base, nada é; outras há, e são estas as mais numerosas, que nem tiveram bom princípio, nem meio razoável, e terão dessa forma o fim sem brilho, como a linhagem de gente plebeia e ordinária. Das primeiras, que tiveram princípios humildes e subiram à grandeza que conservam agora, sirva de exemplo a casa otomana, que de um humilde pastor, que lhe deu origem, está no auge em que a vemos; da segunda, que teve princípio em grandeza e a conserva sem a aumentar, dou para exemplo muitos príncipes, que o são por herança, e a conservam, contendo-se pacificamente nos limites dos seus estados; e dos que principiaram grandes e acabaram em ponta, há inúmeros exemplos,