Admiraram-se os homens tanto da figura como do arrazoado de D. Quixote, sem entender metade do que ele dizia. Acabaram de comer, carregaram com as imagens e, despedindo-se de D. Quixote, seguiram a sua viagem. Ficou Sancho de novo como se não conhecesse seu amo, admirado do que ele sabia, parecendo-lhe que não havia história no mundo, nem sucesso algum, que ele não tivesse cifrado na unha ou cravado na memória; e disse-lhe:
— Na verdade, senhor nosso amo, que, se isto que hoje nos sucedeu se pode chamar aventura, foi das mais suaves e doces que nos têm acontecido em todo o decurso da nossa peregrinação: dela saímos sem pauladas nem sobressalto algum, nem levamos a mão às espadas, nem batemos com os nossos corpos no chão, nem ficamos esfomeados; bendito seja Deus, que semelhante coisa me deixou ver com os meus próprios olhos.
— Dizes bem, Sancho — acudiu D. Quixote; — mas hás-de advertir que nem todos os tempos são os mesmos, nem correm de igual forma; e isto a que o vulgo costuma chamar agouros, que não se fundam em razão natural alguma, hão-de ser considerados e julgados bons sucessos por quem é discreto. Levanta-se um destes agoureiros pela manhã, encontra-se com um frade da ordem do bemaventurado S. Francisco, e, como se tivesse encontrado um grifo, vira as costas e volta para sua casa. Derrama-se ao outro Mendoza o sal em cima da mesa, e derrama-se-lhe a ele a melancolia no coração, como se fosse obrigada a natureza a dar sinal das porvindouras desgraças, com coisas de tão pouco momento como as referidas. O discreto e cristão não deve andar em pontinhos com o que o céu quer fazer. Chega Cipião à África, tropeça ao saltar em terra, e têm-no por mau agouro os seus soldados; mas ele, abraçando-se com o chão: “Não me poderás fugir, África, porque te agarrei com os meus braços”.