O Crime do Padre Amaro - Cap. 23: Capítulo 23 Pág. 454 / 478

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O doutor não respondeu, ocupado a afivelar o seu estojo.

O abade saiu - mas, já no meio do corredor, voltou ainda, e falando com inquietação:

- O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois dos socorros da religião, os moribundos voltarem a si de repente, por uma graça especial... A presença do médico então pode ser útil...

- Eu ainda não vou, ainda não vou, disse o doutor, sorrindo involuntariamente de ver a presença da Medicina reclamada para auxiliar a eficácia da Graça.

Desceu, a ver se estava pronto o cabriolé.

Quando voltou ao quarto de Amélia, a Dionísia e a Gertrudes, de rojos ao lado da cama, rezavam. O leito, todo o quarto estava revolvido como um campo de batalha. As duas velas consumidas extinguiam-se. Amélia estava imóvel, com os braços hirtos, as mãos crispadas duma dor de púrpura escura - e a mesma cor mais arroxeada cobria-lhe a face rígida.

E debruçado sobre ela, com o crucifixo na mão, o abade dizia ainda, numa voz de angústia:

- Jesu, Jesu, Jesu! Lembra-te da graça de Deus! Tem fé na misericórdia divina! Arrepende-te no seio do Senhor! Jesu, Jesu, Jesu!

Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando o Miserere. O doutor que ficara à porta retirou-se devagarinho, atravessou em bicos de pés o corredor, e desceu à rua, onde o moço segurava a égua atrelada.

- Vamos ter água, senhor doutor, disse o rapaz bocejando de sono.

O doutor Gouveia ergueu a gola do paletó, acomodou o seu estojo no assento - e daí a um momento o cabriolé rodava surdamente pela estrada, sob a primeira pancada de chuva, cortando a escuridão da noite com o darão vermelho das suas lanternas.





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