As Máscaras do Destino - Cap. 6: A PAIXÃO DE MANUEL GARCIA Pág. 42 / 80

Há quem suba a descer. Há almas privilegiadas e únicas que nada têm a ver com a lógica absurda das leis humanas. As turbas inconscientes e boçais lançam, à face de certos entes,

anátemas que o céu, se o há, não deve perdoar. À gargalhada insultante deste mundo responde a infinita serenidade do que fica para Além e que os olhos míopes não veem. Manuel subia a descer...

Quando o que lhe ficou para trás não foi mais que um ponto perdido no desapego de tudo a que chegara, quando conseguiu finalmente arrancar de si os pedaços irreconhecíveis do seu sonho desfeito, Manuel Garcia olhou face a face a vida, e sorriu. Oh, o sorriso de desdém dos que querem morrer! Quem foi que se atreveu a dizer alguma vez, quem foi que ousou traçar num papel as letras da palavra cobardia, falando de um suicida?! Oh, a medonha coragem dos que vão arrancando de si, dia a dia, a doçura da saudade do que passou, o encanto novo da esperança do que há de vir, e que serenamente, desdenhosamente, sem saudades nem esperanças, partem um dia sem saber para onde, aventureiros da morte, emigrantes sem eira nem beira, audaciosos esquadrinhadores de abismos mais negros e mais misteriosos que todos os abismos escancarados deste mundo! Quem foi que um dia ousou lançar a um papel as letras ultrajantes da palavra cobardia, essa suprema afronta, esse insultante escarro, à face dos que querem morrer?!

O que lhes foi preciso de coragem desdenhosa, de altiva serenidade, de profundíssimo desprezo, às almas que partiram por querer!

Manuel Garcia lutou um ano, e conseguiu vencer a vida, vencendo-se. Ao pavor do fim, ao medo do sofrimento, ao horror do gesto, daquele gesto que é ainda consciente e que vai deixar de o ser, o gesto para além do qual a nossa vontade, quebrada, não tem poder algum, que é o último antes do pavoroso mistério, a tudo isto, a todos estes fantasmas contra quem lutara um ano inteiro, respondeu ele, um dia, com um sorriso.





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