A Linha de Sombra - Cap. 2: I Pág. 14 / 155

Com dificuldade distingui ainda capas contra as gorduras da cabeça e contra a poeira, colocadas por cima daquela horrível mobília de estofo, enquanto ia pensando que tudo ali era de molde a inspirar a mais pavorosa intimidação, porque não era sequer possível tentar adivinhar a que desgraça oculta, a que necessidade ou arbítrio do destino aquilo se devia. O dono daqueles bens despira o casaco e, vestido com umas calças brancas e uma camisa leve de manga curta, caminhava de um lado para o outro, passando por trás das costas das cadeiras, a embalar nas mãos os cotovelos magros.

Soltou-se-lhe dos lábios uma exclamação consternada ao ouvir-me dizer que tencionava ficar; não tinha, todavia, a menor hipótese de negar que havia muitos quartos disponíveis.

«Está bem assim. Não poderá arranjar-me aquele em que fiquei quando cá estive da outra vez?»

Ele suspirou debilmente por trás de uma pilha de caixas de cartão, que estavam em cima da mesa, e que bem podiam ter outrora contido luvas, lenços de assoar ou gravatas. Não me era possível entender o que é que dentro delas o tipo teria guardado. Naquele antro que era o seu, havia um cheiro a coral em decomposição ou poeira do Oriente e a espécimes zoológicos incertos. Tudo o que pude ver por cima do obstáculo das caixas foram a cabeça e os olhos dele, cheios de infelicidade e levantados na minha direcção.

«É só por uns dias», disse-lhe eu, tencionando animá-lo. «Talvez o senhor queira pagar adiantado», lembrou-me ele com interesse.

«Mas isso com certeza que não!», exclamei assim que consegui recuperar o uso da fala. «Nunca vi uma coisa destas! Isso é um descaramento dos demónios...»

Ele deitou as duas mãos à cabeça, num gesto de desespero total que dominou a minha indignação.





Os capítulos deste livro