— Pois como explicaremos, senhor — respondeu Sancho — parecer-se tanto aquele cavaleiro, seja ele quem for, com o bacharel Carrasco, e o seu escudeiro com Tomé Cecial, meu compadre? E se é encantamento, como Vossa Mercê disse, não haveria no mundo outros dois com quem se parecessem?
— Tudo é artifício e traça — respondeu D. Quixote — dos malignos magos que me perseguem, os quais, prevendo que eu havia de ficar vencedor na contenda, deram ao cavaleiro vencido o rosto do meu amigo bacharel, para que a amizade que lhe tenho se interpusesse aos fios da minha espada e ao vigor do meu braço, e atenuasse a justa ira do meu coração, e deste modo ficasse com vida aquele que com falsidades e embelecos me procurava tirar a minha. Para prova, Sancho, já sabes por experiência, que te não deixará nem mentir nem enganar, quão fácil é aos nigromantes mudar uns rostos noutros, fazendo do formoso feio e do feio formoso, pois ainda não há dois dias que viste com teus próprios olhos a formosura e galhardia da sem par Dulcineia, em toda a sua inteireza e natural conformidade, e eu vi-a na fealdade e baixeza de uma rústica lavradeira, com cataratas nos olhos e mau cheiro na boca; e, se o perverso nigromante se atreveu a fazer tão maldosa transformação, não é muito que fizesse a de Sansão Carrasco e a do teu compadre, para me tirar das mãos a glória do vencimento; mas isso não me importa, porque, enfim, fosse qual fosse a figura que ele tomasse, fiquei vencedor do meu inimigo.
— Deus sabe a verdade de tudo — respondeu Sancho.
E, como ele sabia que a transformação de Dulcineia fora traça e patranha sua, não o satisfaziam as quimeras de seu amo; mas não lhe quis replicar, para não dizer alguma palavra que descobrisse o seu embuste.