As Viagens de Gulliver - Cap. 6: Capítulo IV Pág. 327 / 339

Deitei-me sobre a colcha sem me despir e, ao fim de meia hora, quando julguei que a tripulação estava a comer, saí às escondidas. Quando me encontrava na amurada, pronto para saltar para o mar e fugir a nado para não conviver com os yahoos, fui impedido por um dos marinheiros e, alertado o comandante, este mandou fechar-me a cadeado no camarote.

Depois de comer, dom Pedro visitou-me e inquiriu-me sobre o motivo de tão desesperado intento. Assegurou-me que só desejava ajudar-me na medida do possível. Falou-me de forma tão comovedora que, por fim, acedi em tratá-lo como um animal parcialmente dotado de razão. Descrevi-lhe muito resumidamente a minha viagem, o motim da minha tripulação, a ilha onde me tinham abandonado e os meus três anos de estadia nela. Ele tomava tudo isso como um sonho ou uma quimera, o que me ofendia profundamente, uma vez que perdera por completo a capacidade de mentir, tão característica dos yahoos de todas as nações onde eles existem, tal como não tinha a de suspeitar que os nossos congéneres procuram enganar-nos. Perguntei-lhe se no país dele havia o costume de dizer o que não era. Assegurei-lhe que quase perdera a noção de falsidade e que se tivesse vivido um milénio entre os houyhnhnms jamais teria escutado uma mentira da boca do mais humilde criado. Que não me importava nada que acreditasse ou não em mim mas que, apesar disso, para pagar-lhe as atenções, seria muito indulgente com a sua corrupta natureza e responder-lhe-ia a todas as objecções que se dignasse fazer-me. Assim, ser-lhe-ia fácil descobrir a verdade.

O comandante, que era inteligente, depois de numerosas tentativas de procurar que eu caísse em contradições no meu relato, começou a ter melhor opinião da minha sinceridade.





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