A Linha de Sombra - Cap. 4: II Pág. 45 / 155

Mas tal ideia nem sequer me passou pela cabeça. Tratava-se tão só de mais uma manifestação miraculosa de todo aquele dia de milagres. Despedi-me dele, como se R. não passasse de um símbolo. Desci as escadas como se estivesse a flutuar. E cá fora, foi em pleno ar que continuei a minha flutuação.

Emprego esta palavra de preferência a «voo», porque tenho a impressão muito clara de que, se bem que transportado pela minha juventude redesperta, os meus movimentos eram bastante reflectidos. Perante aquele fragmento de humanidade mesclada, brancos, pardos, amarelos, que andavam a tratar dos seus assuntos pessoais pela rua, o meu aspecto era simplesmente o de um homem que caminha com a maior das tranquilidades. E não há forma abstracta que pudesse igualar a medida do meu desprendimento em relação a todas as dimensões e cores deste mundo. Eu era, por assim dizer, absoluto.

Mas apesar disso, bruscamente, reconheci Hamilton. Reconheci-o sem esforço, sem emoção, nem surpresa. Lá ia ele, caminhando em direcção à capitania, com a sua atitude de dignidade empinada e arrogante. A cara vermelha fazia com que o notassem à distância. Via-se a chamejar ali, do lado da rua que apanhava sombra.

Também ele deu por mim. Alguma coisa (talvez, a exuberância do meu estado de espírito) me levou a cumprimentá-lo com a mão num movimento floreado. Foi um lapso de bom gosto que se desenrolou antes de eu poder ter consciência de que seria capaz de o fazer.

O choque que o meu descaramento lhe provocou fê-lo parar de repente, como uma bala teria podido fazer também. Estou piamente convicto de que ele cambaleou, embora~, tanto quanto pude ver, não tenha chegado realmente a cair por terra. Passei adiante, para além dele, no mesmo instante e não olhei para trás.





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