do planeta Marte, de forma que me é forçoso seguir por esse caminho; por ele hei-de ir, mau grado a toda a gente, e debalde vos cansareis em persuadir-me a que não queira o que os céus querem, o que a fortuna ordena, o que pede a razão, e, sobretudo, o que a minha vontade deseja; pois sabendo, como sei, os inúmeros trabalhos que tem a cavalaria andante, sei também os bens infinitos que com ela se alcançam, e sei que a senda da virtude é muito estreita, e o caminho do vício largo e espaçoso, que os seus fins e paradeiros são diferentes, porque o do vício, dilatado e espaçoso, acaba na morte, e o da virtude, apertado e íngreme, acaba em vida, e não em vida que tenha termo, mas na vida eterna, e sei como disse o nosso grande poeta castelhano:
Conduz-nos esta aspérrima vereda da imortalidade ao alto assento, aonde não chega quem dali se arreda.
— Ai! desditosa de mim — disse a sobrinha — que também meu tio é poeta; tudo sabe e tudo alcança, e aposto que, se imaginar ser alvenel, fabricará uma casa como ninguém.
— Juro-te, sobrinha — respondeu D. Quixote — que se estes pensamentos cavalheirescos me não arrebatassem os sentidos todos, não haveria coisa que eu não fizesse, nem curiosidade que me não saísse das mãos.
A este tempo bateram à porta, e, perguntando-se quem era, respondeu Sancho Pança; apenas a ama o conheceu, tratou de se ir embora, para o não ver, tal era o ódio que lhe votara.
Foi abrir a sobrinha, saiu a recebê-lo de braços abertos seu amo D. Quixote, e encerraram-se ambos no seu aposento, onde tiveram outro colóquio, não menos interessante que o anterior.