.. Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz-doce! Desde a morte da avó.
Mas quando o arroz-doce apareceu triunfalmente, que. vexame! Era um prato monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egipto, emergia de uma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua, vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato acanalhado. - E Jacinto, erguendo o copo de champanhe, murmurou corpo num funeral pagão:
- Ad manes, aos nossos mortos! Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria do lume. Fora, o vento bramava como num ermo serrano: e as vidraças tremiam, alagadas, sob as bátegas da chuva irada. Que dolorosa noite para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha aldeia, entre cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí cada pobre, sob o abrigo da sua telha vã, com a sua panela atestada de couves, se agacha no seu mantéu ao calor da lareira. E para os que não tenham lenha ou couve, lá está o João das Quintãs, ou a tia Vicência, ou o abade, que conhecem todos os pobres pelos seus nomes, e com eles contam, como sendo dos seus, quando o carro vai ao mato e a fornada entra no forno. Ah Portugal pequenino, que ainda és doce aos pequeninos!
Suspirei, Jacinto preguiçava. E terminámos por remexer languidamente os jornais que o mordomo trouxera, num monte facundo, sobre uma salva de prata - jornais de Paris, jornais de Londres, semanários, magazines, revistas, ilustrações... Jacinto desdobrava, arremessava: das revistas espreitava o sumário, logo farto; às ilustrações rasgava as folhas com o dedo indiferente, bocejando por cima das gravuras.