Tinha sérias esperanças de apanhar o bruto, que dificilmente poderia escapar da armadilha em que se enfiara. Só podia fugir pelo cabo do pára-raios e nesse caso seria apanhado quando descesse. Por outro lado inquietava-o o que ele podia vir a fazer na casa. Este último pensamento fez com que o homem se decidisse a continuar a sua perseguição do fugitivo. Não é difícil trepar por um cabo de pára-raios, sobretudo quando se é marinheiro; mas ao chegar à altura da janela verificou que não podia avançar mais. A única coisa que conseguiu fazer foi debruçar-se para ver o que se passava no quarto. E o que viu aterrorizou-o de tal forma que quase lhe fez perder o equilíbrio. Foi então que os gritos dilacerantes cortaram o silêncio da noite e arrancaram ao sono os moradores da Rua Morgue. Madame L’Espanaye e a filha estavam talvez a pôr em ordem alguns papéis
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HISTORIAS EXTRAORDINÁRIAS
no cofre de ferro já mencionado e que fora arrastado até ao meio do quarto. O cofre estava aberto e o seu conteúdo espalhado pelo chão. As vítimas deviam estar sentadas de costas para a janela, e a julgar pelo tempo decorrido entre a entrada do animal e os primeiros gritos é provável que não se tivessem apercebido imediatamente da sua presença. O bater da persiana teria sido provavelmente atribuído ao vento.
No momento em que o marinheiro olhou para o quarto, o gigantesco animal agarrava Madame L’Espanaye pelos cabelos (que estavam soltos, pois a senhora estivera a pentear-se) e agitava-lhe a navalha em volta do rosto, na imitação dos gestos de um barbeiro. A filha jazia prostrada e imóvel: perdera os sentidos. Os gritos e os esforços da velha senhora (enquanto os cabelos estavam a ser arrancados) tiveram como resultado transformar em fúria as intenções provavelmente pacíficas do orangotango.