«O cenário, como vê, nada tinha de extraordinário: um muro, um lilás em flor, o horizonte a esbater-se nas cinzas abrasadas do crepúsculo... Vocês, os romancistas, precisam de muito mais... Pois bem! daquele muro, daquele lilás, com o horizonte, opala a fundir-se num largo oceano de sombras, por pano de fundo, fez o meu doido um grande tratado de Filosofia para uso das almas simples e sofredoras; com aquele pouco, compôs ele os dogmas da minha futura religião.
«“Vês? ” apontava ele para o horizonte longínquo. “Não, tu não podes ver!, à tua compreensão só pode chegar a perceção dos objetos que os teus misérrimos sentidos te apresentam e tal como eles te os apresentam. Lês isso em qualquer cartapácio de Filosofia.
«O bom do Kant passou a vida a pregá-lo. O que os teus dedos tateiam são as ilusões dos teus olhos e dos teus ouvidos. Árvores! Que são árvores?... Pedras? Poeira? Que é isso? É o mundo!... E tu vês o mundo! Os homens criaram o mundo! De uma árvore fizeram uma floresta, de uma pedra um templo, deitaram-lhe por cima um pozinho de estrelas, e pronto... fizeram o mundo! E não há árvores, não há pedras e não há florestas, nem há templos, e as estrelas não existem. Não há nada, digo-te eu. Tu não sabes nada. Os mortos é que sabem. Os vivos chamam-lhes sombras. Os vivos metem as sombras dentro de um caixão, fecham-no à chave, pregam-no bem pregado, soldam-no, afundam-no na terra, muito fundo, e a sombra lá vai... fica o resto. São eles que por aí andam, são eles que tu sentes. Não há árvores, não há pedras, não há nada: há mortos. Os mortos é que fazem a vida; dentro dos túmulos não há nada. Eu queria agora dizer-te o que vejo, o que os mortos veem, mas não posso. As palavras não vão além do que tu vês e ouves; as palavras são túmulos: estão vazias.