.. Olha, é verdade! Tenho! - prosseguiu num ar admirativo de satisfação. - Eu tenho aqui dinheiro e... não sou um burguês.
- Um burguês é um homem que tem sono às nove horas da noite - proferiu a outra rapariga.
- Também não é. Quando estou três noites sem me deitar, tenho sempre sono às nove horas da noite. Às duas da madrugada é que me passa... - rematou Castro Franco, muito sério.
- Je suis un affreux bourgeois - gaguejou Paulo Freitas, sorvendo o seu décimo cálice de Porto.
Castro Franco voltou a cabeça para ele, e com um profundo desdém:
- Nem bêbedo é original, este animal.
- Rima - respondeu o outro, num ar de grande seriedade.
Foi então que, pela primeira vez, naquela noite, se ouviu, numa frase seguida, a voz da Gatita Blanca:
- Um burguês é todo o homem que ao menos uma vez na sua vida tenha tido medo. Medo - repetiu sublinhando a palavra-, não «susto». A vossa negregada língua tem tais subtilezas...
- Essa serve. A Gatita Blanca falou e falou bem - pontificou Castro Franco, muito solenemente, com a cabeça direita e o dedo muito espetado.
- Je suis un affreux bourgeois - disse, pela segunda vez, Paulo de Freitas.
Ninguém se dignou responder àquela gloriosa evocação de Vautel.
Mário de Meneses, mais aborrecido, mais irritado, a face torturada de tiques nervosos, acendeu o último cigarro, que deixou ficar em cima da mesa, levantou-se, dirigiu-se para a janela, onde ficou de pé a tamborilar com as pontas dos dedos nos vidros, onde a chuva traçava misteriosos sinais cabalísticos.
Toda a noite estivera maldisposto, sem saber porquê. Ficara assim logo que entrara e dera com os olhos naquela mulher, que não conhecia, que apenas entrevira na véspera à porta do clube onde um amigo comum os tinha apresentado um ao outro.