Capítulo 29: LIVRO QUARTO / CAPÍTULO XXVIII - Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro.
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Fernando como tivera valor para acumular tantas perfídias. Em dois dias e meio cheguei à cidade, e perguntei pela rua dos pais de D. Lucinda. O primeiro a quem me dirigi respondeu-me mais do que eu desejara ouvir; mostrou-me a casa, e me referiu quanto no desposório sucedera, coisa tão falada, que por toda a parte se faziam conventículos, em que se não tratava doutra coisa. Disse-me que na noite do casamento de D. Fernando com D. Lucinda, depois dela ter proferido o sim, lhe tinha dado um rijo desmaio, e que, chegando o marido a desatacar-lhe o peito para lhe dar o ar, lhe achou um papel escrito do próprio punho dela, em que declarava que não podia ser esposa de D. Fernando, porque já o era de Cardênio, que, segundo o homem me disse, era um cavaleiro mui principal da mesma cidade, e que se havia dado o sim a D. Fernando, fora por sujeição a seus pais. Em suma, tais razões disse conterem-se no papel, que bem se entendia que a intenção dela tinha sido de matar-se logo após o ato do desposório, e ali mesmo dava os porquês do seu suicídio. Dizem que a verdade de tudo aquilo se confirmou por lhe terem achado uma daga oculta no vestido, não sei onde. Presenciado tudo aquilo por D. Fernando, este, por entender que Lucinda o havia burlado e escarnecido, arremeteu a ela ainda desmaiada, e com a mesma daga que lhe acharam a quis atravessar; e fá-lo-ia, se os pais e mais pessoas presentes o não estorvassem. Mais disseram que D. Fernando desaparecera logo dali, e que D. Lucinda não tornara em si até ao outro dia, e que então contara a seus pais que era verdadeira esposa do sobredito Cardênio. Soube, além disso, que ele, o Cardênio, assistira, segundo se dizia, àquele tremendo desposório, e vendo-a casada (o que ele nunca imaginara) saiu da cidade desesperado, deixando-lhe uma carta em que explicava a Lucinda o agravo que lhe havia feito, e que ele se ia para onde nunca mais alguém o visse.
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