Capítulo 29: LIVRO QUARTO / CAPÍTULO XXVIII - Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro.
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homem até então fiel e seguro, assim que me viu naquela solidão, mais incitado da sua velhacaria que da minha formosura, quis aproveitar a oportunidade que ao seu parecer lhe deparavam estes ermos; e sem resguardo de vergonha, nem temor de Deus, nem respeito à minha pessoa, me requestou. Desenganado com as minhas respostas injuriosas e justas aos seus desavergonhados projetos, deixou-se das rogativas por onde havia começado e passou a empregar a força. O céu, porém, que poucas vezes deixa de ajudar o que é justo, olhou por mim, de modo que eu, débil e sem grande trabalho, dei com ele de um precipício abaixo, onde o deixei não sei se morto, se vivo; e logo, com mais presteza do que se pudera esperar da minha canseira e de tamanho sobressalto, me entranhei por estes sítios montesinos, sem outro intuito senão homiziar-me às pesquisas de meus pais, e da gente que por ordem sua me andava rastreando. Aqui me embosquei há não sei já quantos meses; achei um maioral, que me levou por seu criado a um lugar no coração destes montes. De pastor lhe tenho servido todo este tempo, procurando sempre os descampados para encobrir estes cabelos, que tão inesperadamente agora me revelaram. Nada me valeram porém tantas cautelas; veio meu amo a saber que eu não era varão, e entrou na mesma danada tentação do servo; e, como nem sempre a fortuna põe a par dos males os remédios, não achei precipício nem barranco onde despenhar e despenar ao amo, como ao outro havia feito, e assim tive por melhor fugir-lhe e esconder-me de novo entre estas asperezas, que experimentar com ele as minhas forças, desculpas ou rogativas. Tornei pois a embrenhar-me onde sem impedimento pudesse com suspiros e lágrimas suplicar ao céu se condoesse das minhas desventuras
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