Quixote para o ir pôr em obra, levantou-se, tomou a mão da sua senhora, e, ajudado do cavaleiro, a subiu para a mula. D. Quixote montou logo no Rocinante, o barbeiro na sua cavalgadura, ficando Sancho a pé, renovando-se-lhe as saudades do seu ruço, pela falta que lhe fazia. Entretanto levava tudo com gosto, por lhe parecer que o amo estava em caminho, e muito em vésperas de ser Imperador, porque já dava por infalível que breve o veria matrimoniado com aquela Princesa, e, pelo menos, Rei de Micomicão. O que só lhe pesava era pensar que o reino de Micomicão era em terra de negros, e que os seus vassalos haviam-de ser todos pretaria. Para isso imaginou logo um bom remédio, e disse com os seus botões:
— Que se me dá a mim que os meus vassalos sejam pretos? não há mais que embarcá-los, trazê-los a Espanha, e vendê-los com paga à vista; com esse dinheiro posso comprar algum título ou algum ofício para passar descansado o resto da vida. A gente não há-de ser tola; e para conveniência própria não pode ser proibido vender trinta ou dez mil vassalos sem mais nem menos, e enquanto o diabo esfrega um olho. Voto a Deus que os hei-de encampar todos à rasa, pequenos e grandes, ou o melhor que eu puder, e, por mais pretos que sejam, os saberei transformar em brancos ou amarelos.
Venham eles, e verão como os avio.
Com isto andava tão ativo e contente, que nem já lhe lembrava que ia a pé.
Tudo aquilo observavam dentre as sombras dumas moitas Cardênio e o cura, e não sabiam que fazer para se agregarem ao rancho. Porém o cura, que as armava no ar, ideou logo expediente. Com uma tesoura, que trazia num estojo, cortou as barbas a Cardênio, emprestou-lhe o seu capotinho pardo e um ferragoulo preto, ficando ele em calças e gibão; com o que tão transfigurado saiu o nosso Cardênio, que nem vendo-se a um espelho se reconheceria.