Quixote, o qual quis que ao seu lado se assentasse a senhora de Micomicão, porque ele era o seu cavaleiro e defensor.
Em seguida assentaram-se Lucinda e Zoraida, e fronteiros a estas D. Fernando e Cardênio, e logo os outros cavaleiros, e do lado das senhoras e ao pé delas o cura e o barbeiro: e deste modo cearam com grande satisfação, a qual subiu de ponto quando viram a D. Quixote deixar de comer, e, movido por outro espírito semelhante àquele que o fez falar, quando ceou com os cabreiros, principiar o discurso seguinte:
— Verdadeiramente, senhores meus, se bem se consideram as coisas, são muitas vezes extraordinários e inauditos os acontecimentos presenciados por todos os que professam a ordem da cavalaria andante: senão, dizei-me; quem seria o habitador deste mundo, que, entrando pela porta deste castelo, e vendo-nos estar do modo que estamos, pudesse ajuizar e crer que nós somos quem somos? Quem pensaria que esta senhora, aqui ao meu lado assentada, é a grande rainha que todos nós sabemos, e que eu sou aquele cavaleiro da Triste Figura, cujo nome a boca da fama por aí tem espalhado? Já se não pode duvidar que este ofício e ocupação excede a todos aqueles e aquelas que os homens inventaram, e tanto mais deve ser estimado, quanto a maiores perigos está sujeito: e não ousem contradizer-me os que pretendem sustentar que as letras levam vantagem às armas, pois eu lhes afirmarei, sejam eles quem quer que forem, que não sabem o que dizem: porque a principal razão em que os tais se fundam é em que os trabalhos do espírito excedem muito os do corpo, e que as armas somente ao corpo pertencem e por ele só são exercitadas; como se uma tão nobre ocupação fosse ofício próprio daqueles que levam a sua vida conduzindo cargas,