Capítulo 39: CAPÍTULO XXXVIII - Em que se continua o discurso que fez D. Quixote sobre as armas e as letras.
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ao seu capitão do que sucede para que o remedeie com alguma contramina, e ele conservar-se quieto e firme no seu posto, esperando a cada instante voar até às nuvens sem ter asas e cair depois sobre a terra muito contra sua vontade. E se este perigo ainda parece pequeno a alguns, vejamos se porventura é menor o de duas galeras que mutuamente se investem no largo e espaçoso mar, aferradas as quais uma à outra pelas proas, não fica ao soldado mais espaço que o duma tábua de três palmos junto do esporão; e, apesar de tudo isto e de conhecer diante de si tantos sinistros de morte, que o ameaçam, quantos são os canhões assestados da parte contrária à curta distância dum tiro de lança, e de ver que o primeiro descuido dos pés o levaria a visitar os abismos profundos de Neptuno, guiado pela briosa inspiração do dever e da honra militar, se expõe a ser o alvo da mosquetaria e se esforça por passar o passo estreito e tão perigoso, que o separa da embarcação inimiga: e o mais admirável é que, apenas um tem caído em sítio donde até ao fim do mundo se não levantará mais, outro vai imediatamente substituir-lhe o lugar, e, se este é da mesma maneira engolido pelas goelas insaciáveis do mar, outro e outro lhe sucedem sem dar tempo ao tempo de suas mortes: atrevimento e valentia a maior que pode encontrar-se em todos os lances da guerra. Venturosos foram aqueles séculos que careceram da espantosa fúria destes endemoninhados instrumentos da artilharia, cujo inventor tenho cá de mim para mim que está recebendo no inferno o prêmio devido à sua diabólica invenção, com a qual proporcionou meios a um braço infame e covarde para tirar a vida a um valoroso cavaleiro, pois se vê amiudadas vezes que, sem saber-se como nem por onde, chega uma bala
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