E acreditai que vos será de muito proveito, tanto à alma como ao corpo: à alma, pela caridade com que procedereis; ao corpo, porque sei que sois de compleição sanguínea, e não vos poderá fazer mal tirar um pouco de sangue.
— Muitos médicos há no mundo! — redarguiu Sancho — até o são os nigromantes! Mas já que todos insistem comigo, ainda que entendo que é grande tolice, não tenho remédio senão consentir em apanhar os três mil e trezentos açoites, com a condição de os poder dar eu em mim próprio, quando muito bem quiser, sem que me marquem a ocasião; procurarei pagar a dívida o mais depressa possível, para que o mundo goze a formosura da senhora D. Dulcineia del Toboso. Quero também a condição de não ser obrigado a tirar sangue com a disciplina, e que se alguns açoites forem de enxotar moscas, também hão-de entrar na conta. Item, que se eu me enganar no número, o senhor Merlin, como sabe tudo, terá cuidado de os contar, e de me dizer quantos me faltam ou quantos me sobram.
— Não preciso de avisar com relação às sobras — respondeu Merlin — porque, em chegando ao número completo, logo ficará de súbito desencantada a senhora Dulcineia, e virá, agradecida, procurar o bom Sancho, e premiá-lo pela sua boa obra. Assim, não há que ter escrúpulo com os sobejos, nem permita o céu que eu engane a ninguém, num cabelo que seja.
— Eia, pois! na mão de Deus me entrego — disse Sancho — consinto na minha má ventura, quer dizer, aceito a penitência com as condições apontadas.
Apenas Sancho disse estas últimas palavras, voltou a tocar a música das charamelas, tornaram-se a disparar infinitos arcabuzes, e D. Quixote pendurou-se do pescoço de Sancho, dando-lhe mil beijos na testa e nas faces. A duquesa e o duque e os circunstantes deram sinal de grandíssimo contentamento, e o carro começou a caminhar, e a formosa Dulcineia, ao passar por diante dos duques, inclinou-lhes a cabeça e fez uma profunda mesura a Sancho.