Ouvindo isto, ficou D. Quixote pasmado, porque logo naquele instante lhe acudiram à memória as infinitas aventuras, semelhantes àquela, de reixas e de jardins, músicas, requebros e desvanecimentos, que lera nos seus livros de cavalaria. Logo imaginou que alguma donzela da duquesa estava dele enamorada e que a honestidade a forçava a ter oculto o seu desejo.
Tremeu de ser rendido, mas tomou a firme resolução de se não deixar vencer, e encomendando-se com o maior fervor à sua dama Dulcineia del Toboso, decidiu-se a escutar a música; e para fazer perceber que estava ali, deu um fingido espirro, com que muito se divertiram as donzelas, que não desejavam outra coisa senão que D. Quixote as ouvisse.
Afinada a harpa, Altisidora deu princípio ao seguinte romance:
Ó tu, que estás no teu leito
com lençóis de holanda fina,
dormindo bem regalado,
sem sentires a espertina,
cavaleiro o mais valente
que na Mancha se há gerado,
mais honesto e abençoado
que o ouro da Arábia ardente:
ouve uma triste donzela,
bem-nascida e mal lograda,
que na luz desses teus olhos
a alma sente abrasada.
Achas desditas alheias,
quando buscas aventuras;
e de amor cruéis feridas
tu as dá, mas não as curas.
Diz-me, bravo mancebo,
(que Deus cumpra os teus desejos)
se te criaste na Líbia
ou em montes sertanejos.
Deram-te leite as serpentes?
Foram tuas amas bravias
as aspérrimas florestas
e o horror das serranias?
Mui bem pode Dulcineia,
donzela sã e gorducha,
gabar-se de ter rendido
um tigre, fera machucha.
Por isso, será famosa
de Jarama até Henares,
de Pisuerga até Arlanza
e do Tejo ao Manzanares.