Amor de Perdição - Cap. 6: Capítulo 6 Pág. 33 / 145

– Ora, meu fidalgo – continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das mangas – há-de desculpar que eu viesse assim em mangas de camisa; mas não dei com a jaqueta…

– Está muito bem, senhor João – atalhou o académico.

– Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco dum couce que um macho dum almocreve deu numa égua, que eu estava ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe partiu rente o jarrete por aqui, salvo tal lugar.

João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fracturada a da égua, e continuou:

– Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse com ele na cabeça do macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Garção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga, e desfechou comigo, sem mais tir-te nem guar-te. «Ó alma danada! – disse-lhe eu – pois tu vês que o teu macho me aleijou esta égua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?»

– E o tiro acertou-lhe? – atalhou Simão.

– Acertou: mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu--me aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho--lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me, e fui para Viseu e já lá estava há três anos, no ano em que o paizinho de vossa senhoria veio corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca. Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir sentença, e disse-me ele que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dores de Nossa Senhora. Uma vez que ele ia passando com a família para a missa, disse-lhe eu: «Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas sete dores de Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença, para eu explicar a minha culpa a vossa senhoria.» O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho-geral, e mandou tomar o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor corregedor, e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço.





Os capítulos deste livro