Disse, e fui procurar o cavalo. Tinha-se desprendido e estava a espolinhar-se em regaladas cambalhotas. As cilhas do selim estavam partidas; as rédeas também; a cabeçada tinha apenas duas correias úteis.
Rugi de cólera, e o cavalo, espavorido, fugiu a desapoderado galope, caminho de Lisboa.
A providência é mestra do ridículo, quando quer. O meu rancor repartiu-se entre amante de Paula e o quadrúpede fugitivo. Depois, sentei-me esbofado num degrau de escada, olhei para a lua, olhei para mim, olhei para o selim que eu trouxera debaixo do braço, e ri-me.
E o meu riso era um espirro de ferocidade, uma destas coisas que sente o Lúcifer quando sacode a vertigem da raiva impotente contra Deus.
Eram quatro horas da manhã quando emergi do meu letargo. Vi um padeiro, que me contemplava assustado: pedi-lhe que me levasse o selim entre a carga; e eu caminhei, admirando a impassibilidade da natureza, que parecia zombar de mim, pela voz dos seus rouxinóis, dos seus cochichos e das suas calhandras.
***
O meu cavalo, afrontando-se com a barreira, parou. Quando eu cheguei, estava ele amarrado com um cabresto às grades da porta, e os guardas escreviam um ofício ao respetivo comandante, participando a presa que tinham feito e pedindo ordens sobre o destino do vadio.
Convenci-os de que o cavalo oficiado era meu pelo testemunho convincente da sela e dos fragmentos d cabeçada; mas, como não quisessem perder o ofício, obrigaram-me a esperar a resposta da autoridade que houve a bem julgar-me o legal proprietário da besta.