TERCEIRA PARTE – ESTÔMAGO
CAPÍTULO I - DE COMO ME CASEIProcurei o refúgio dos penates, o lar em que derivam bem-aventuradas as gerações dos meus passados. Saboreei-me nas delícias do repouso, posto que em volta de mim só visse as imagens da numerosa família que descansava no pavimento da pequenina igreja. Lá estavam todos, como operários, que findaram sua jeira e, ao entardecer, encostaram a face ao pedestal da cruz e adormeceram.
Meditei no suave viver dos meus pais e comparei-o às dores, umas lastimáveis e outras ridículas, que me tinham delido o coração, e desconcertado o aparelho de pensamento. Viver segundo a razão, alvitre que os filósofos pregoam, é bom de dizer-se e desejar-se, mas enquanto os filósofos não derem uma razão a cada homem, e essa razão igual à de todos os homens, o apostolado é de todo inútil.
Melhor avisados andam os moralistas religiosos, subordinando a humanidade aos ditames de uma mesma fé; todavia - e sem menoscabo dos preceitos evangélicos que altamente venero -, parece-me que o homem, sincero crente, e devotado cristão, no meio destes mouros, que vivem à luz do século, e meneiam os negócios temporais ao seu sabor, tal homem, se pedir ao seu bom juízo religioso a norma dos deveres a respeitar, e dos direitos a reclamar, ganha créditos de parvo, e morre sequestrado dos prazeres da vida, se quiser poupar-se ao desgosto de ser apupado, procurando-os.
Como sabem, eu nunca andei em boas-avenças com a religião dos meus pais; e por isso me abstenho de lhe imputar a responsabilidade das minhas quedas, seja dos pináculos aéreos onde o coração me alçou, seja do raso da razão, onde as quedas, bem que baixas, são mais igminiosas. Eu comparo o cair das alturas do coração à queda que se dá de um garboso cavalo: quem nos vê cair pode ser que nos deplore; mas decerto nos não acha ridículos.