Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 4: CAPÍTULO III - A MULHER QUE O MUNDO DESPREZA Pág. 79 / 156

Retingiram-se-lhe as faces e cessou algum tempo a tosse. Já subia comigo aos píncaros das serras, quando eu caçava; trazia ao tiracolo a saca de malha com a merenda, e por lá, naqueles vales, onde os medronheiros e avelãzeiras vinham a terra com frutos, era de ver as delícias com que ela comia, por igual comigo, as grosseiras iguarias que levávamos.

Entrou o Outono, e logo notei a desmedrança e abatimento de Marcolina. A decomposição parece que se via, como se os vermes lhe andassem roendo já perto da epiderme. Quis voltar com ela a Lisboa; mas achei-a pertinaz em não sair da aldeia. Dizia-me que fosse eu distrair-me e que a deixasse ali acabar os seus dias.

Poucos tinha ela já de vida, quando a mais velha das irmãs lhes escreveu contando que o pai voltara rico de África e pusera anúncios nos jornais indagando notícias da sua mulher e filhas. Dizia mais que ele fora ao recolhimento e chorara de alegria vendo-as; mas logo se enfurecera quando elas lhe falaram da mãe. Acrescentava que ele, sabendo que devia à enteada o refúgio das suas irmãs, estava ansioso por vê-la, e pedia-lhe que voltasse imediatamente a Lisboa.

Esta carta deu delírios de júbilo a Marcolina. Fez por vigorizar-se para a jornada, não tanto para testemunhar a felicidade das irmãs como para pedir ao padrasto que não desamparasse sua mulher. A esperança apagou-se súbita, quando preparávamos a partida. Fui, uma tarde, à vila próxima comprar alguns aprestos para a jornada, e quando voltei estava Marcolina nos últimos arrancos. Agitou-se vertiginosamente quando me viu apertou-me ansiosamente contra o coração e murmurou:

- Agora... e só agora me atrevo a dizer-te que te amei... Deixo-te a eterna lembrança da desgraçada que só à hora da morte se julga digna de ti.





Os capítulos deste livro